Lá em casa, não raras vezes, ouvi a minha mãe ulular com as suas amigas, irmãs, primas…, que chegavam de visita e levavam muitos minutos, as vezes horas, entregavam-se à conversa. Naquele dia não foi diferente. Eu acabava de chegar do mercado, onde por orientações dela, havia ido comprar tomate. Quando regressei, lá estava ela ululando com mais duas titias. Assim que me viu, percebeu que Maimuna, minha irmã que tinha apenas 6 meses, que carregava ao colo, estava sem um dos pés da sua sandália.
O fluxo dos “ulús” foi interrompido por alguns instantes, para dar lugar ao questionamento sobre o paradeiro da Sandália da Maimuna. “Não sei onde está”, respondi. A partir daí, fui escorraçada, antecedido por palavras duras: “sua atrapalhada, não sabe controlar criança, vá, procurar sandália de bebé”! – disse ela com uma cara assustadora, a palma da mão levantada, gesto claro de que, se eu permanecesse ali, levaria uma daquelas chicotadas pesadas, como em outros momentos.
Saí a correr, aborrecida por perder os “ulús” seguintes, por culpa da maldita Sandália da Maimuna, que justamente desaparecera na hora que os “ulus” eram mais apetecíveis. Dentro de mim pairavam vozes de pergunta e indignação: por que a mamã se zanga comigo se foi a Maimuna quem deixou a sandália cair e não disse nada?
Hoje, já cresci, sei que a Maimuna não sabia nada sobre a sandália cair. Aliás, ela até podia sentir o objecto cair e ficar para traz, mas ainda não tinha competências para comunicar com clareza, mas sim, com uns tantos balbucios ou traquinices que eu, também criança, não sabia interpretar. Muitas vezes, era eu quem pagava pelos erros da Maimuna. “Sua atrapalhada, deixou a criança queimar, deixou a criança ferir-se, deixou a criança… “ Eram tantos, “atrapalhada, deixou criança“, que perdi a conta.
Eu devia ser vigilante da pequena Maimuna para evitar que se magoasse, e assim, evitar os sermões e as chicotadas da mamã. O pico dessa responsabilidade foi atingida quando ela começou a gatinhar e, depois, a dar os primeiros passos. Aquilo parecia uma eternidade. Eu julgava que jamais seria livre como as borboletas. Era uma espécie de câmera de vigilancia, sondando cada movimento dela, o tempo todo.
Assim foi a minha infância, e é a de muitas crianças na nossa África, Moçambique e Lichinga, em particular. Desde cedo, cuidamos de outras crianças. Os rapazes têm um pouco de sorte: ficam por ai, metidos nos seus brinquedos artesanais.
Chega de choramingar, deixa-me voltar a falar dos “ulús”. Mas antes, desejo boas ferias a todos os meninos e meninas, e espero que as mães livrem as meninas das Maimunas, para que elas, também tenham uma infância linda.
Nas conversas da minha mãe com suas amigas, tias e conhecidas, os “ulús” não faltavam. Às vezes, os “ulús”, intercalavam-se com o bater do corpo das mãos de duas ou mais senhoras que ao mesmo tempo, se cruzavam ao meio, antecedido de uma situação ou dito agradável e digno de risos e comemoração momentânea. Surgia então aquela palavra de exclamação, de uma das integrantes do grupo e as outras seguiam o ritmo de “ululú”, e ouvia-se: “Ulú” […], num tom agudo e persistente. Havia também coincidência de “Ulús”: duas ou três senhoras diziam no mesmo instante, “uluuú…”, prolongado, cheio de us.
A outra versão de “Ulú” é “ulular” quando se canta, para animar a cantaria, também ulula-se, “ulululuuuu” a língua vibra ao fabricar ululus, também, faz vibrar os ouvidos pelo ritmo agradável e sem igual de ulululuuu…
É divertida a partida de “ulú” ou “ululus”. Sem dúvidas, apimenta conversas e tempera como música ou como sal. Uma autêntica terapia de “Ulú” praticada pelas mamãs (predominante, na língua emakwa, língua falada no norte e algumas zonas do centro de Moçambique. Em outras zonas de Moçambique, os “ululus” estão também presentes nas cantarias tradicionais), não há nenhuma festa de casamento ou qualquer festa seja ela moderna ou tradicional que não se ouve um “ululuuu…” persistente.
Eu, claro ficava curiosa para bisbilhotar o desenrolar da conversa sempre que surgia um “ulú”. Muitas vezes, não entendia nada, falava-se em códigos, ou talvez a linguagem usada não era apropriada ao meu vocábulo fresco. “Deve ser agradável ulular“, pensava. E prometi a mim mesma: quando crescer, quero ulular como a minha mãe, que gritava bem alto “ulú.., sem remorso, seguido de gargalhadas que apimentam o momento.
Hoje, senhora dona de mim, e já faço meus “ulús” e “ulululus” com as minhas amigas. Prova de que há sempre uma criança que mora dentro de nós. Mas não ouso deixar uma outra criança cuidar de outra, para não interromper a infância de quem quer que seja. Afinal, a infância é a melhor fase da vida, e toda criança é terra fértil, pode se semear [nela] qualquer cultura, vai brotar. “Flores que jamais, murcharão”, parafraseando Machel.
_Luís Madaba_
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